LUDWIG VAN BEETHOVEN [1770-1827]
Sinfonia nº 9 em Ré Menor, Op.125 — Coral
Beethoven divide a história da música em antes e depois. Mais do que acelerar a transição do classicismo de Haydn e Mozart para o romantismo de Liszt e Wagner, Beethoven antecipa irreversivelmente a própria modernidade. De certo modo, algumas de suas técnicas composicionais se assemelham muito mais às do cinema do século XX — com cortes abruptos, fusões e sobreposições de acontecimentos musicais, recuperação de memórias tênues, zooms e tomadas panorâmicas — do que às da música de sua época. Com sua “tesoura poética” em punho — como disse uma vez o compositor e professor brasileiro Willy Corrêa de Oliveira —, Beethoven concatena as sequências e constrói sua narrativa musical como quem edita uma filmagem.
É também nesse sentido que sua Sinfonia nº 9 pode soar ainda tão atual neste início de século XXI no Brasil. Ouvi-la é estar sujeito a surpresas, a grandes contrastes de sensações, a sacrifícios, êxtases e riscos, a caminhos sem volta. Sua sobrevida e seu grande sucesso, dentro e fora das temporadas de concerto, podem ser em parte explicados pela avassaladora força de seu movimento final, em que a Ode à Alegria (1786) de Friedrich Schiller, musicada, faz o próprio gênero sinfonia desdobrar-se sobre si mesmo, transbordando para além do reino da música pura instrumental.
Beethoven levou doze anos para compor suas oito primeiras sinfonias (de 1800 a 1812) e, de certa forma, mais doze para a composição da derradeira, estreada em 1824 (há esboços que datam de 1815). Mas a escrita, longe de fundamentar-se apenas no artesanato de motivos unificadores (como o das quatro primeiras notas da Quinta Sinfonia), deixa vazios para o episódico, abre espaço para “pontos sem nó”, numa utópica tentativa de síntese de toda a sua obra. Na Nona — a sinfonia em Ré Menor que deságua na Ode à Alegria (em Ré Maior) —, Beethoven recupera e intensifica a mesma estratégia bem-sucedida da sinfonia em Dó Menor (a Quinta), além de lançar mão de outros elementos reconhecíveis de diversas obras suas. Como resultado, tem-se um agregado de possibilidades, ora singelamente sugeridas, ora contundentemente manifestadas, que podem ser ainda mais bem entendidas se colocadas lado a lado às nuanças de sua peça antípoda, a Missa Solemnis, também de 1824. Se por um lado, na missa, Beethoven não se restringe ao universo puramente sacro, mas abre-o para “sinfonismos” ocasionais, por outro, no final da Nona, há momentos em que a sinfonia se transmuta em passagens essencialmente religiosas, como que a se elevar para “além do firmamento”, como sugere o poema de Schiller.
Entre muitas soluções criativas particulares à Nona — que passariam a ser referenciais para os compositores posteriores —, des taca-se o deslocamento do movimento lento, o “Adagio”, que costumeiramente ocupava a posição de segundo movimento, para a posição de terceiro. Como é comum em Beethoven, aqui o conteúdo a ser expresso determina a forma que o carrega; neste caso, o ajuste foi necessário para provocar uma maior introspecção, uma placidez meditativa, no intuito de gerar um estado que permitisse e ao mesmo tempo se contrapusesse à apoteose que estaria por vir no movimento final.
Após a introdução instrumental e seguidas variações do tema, uma inesperada intervenção da voz humana (barítono), em meio ao tutti orquestral, apresenta-se como o ponto crucial do finale:
“Oh, amigos, não esses tons” (palavras escritas por Beethoven). Lewis Lockwood, pesquisador de Harvard, destaca o fato de o compositor se dirigir diretamente à humanidade num simbolismo que abraça “não somente os milhões de pessoas, mas uma crença num mundo onde o destino delas importa tanto quanto o de cada indivíduo”; é a celebração de um mundo maior, da “fraternidade humana como defesa contra a escuridão”.
SERGIO MOLINA é compositor, doutor em música pela USP, coordenador da pós-graduação em canção popular na Fasm (SP) e professor de composição no ICG/UEPA de Belém.
Leia sobre a Nona Sinfonia no ensaio "Memória e Antecipação: A Nona Sinfonia", de Samuel Titan Jr. aqui.