Morrer, para viver! O mote da Sinfonia nº 2 de Mahler pode ser entendido como uma reflexão sobre o próprio destino do gênero sinfônico no final do século xix. A questão continuava a mesma: como compor uma sinfonia após a Nona de Beethoven? A tarefa era intimidadora, e todo bom compositor sabia disso. Em 1876, um ano após a entrada do jovem Gustav Mahler no Conservatório de Viena, Johannes Brahms teve a coragem de finalmente estrear sua Primeira Sinfonia, resultado de quase duas décadas de trabalho. Na mesma época, inspirado pelas novidades wagnerianas, Anton Bruckner escrevia e reescrevia suas várias sinfonias, buscando assegurar a sobrevivência do gênero, em meio aos exaltados debates do Romantismo tardio.
Abalado pela péssima acolhida de sua Primeira Sinfonia, e sempre ocupado com as várias tarefas do cargo de regente e diretor musical (primeiro em Budapeste, depois em Hamburgo), Mahler dedicou mais de seis anos para compor uma nova tentativa de resposta ao desafio de Beethoven. A Segunda Sinfonia, com o sugestivo subtítulo Ressurreição, estreou em 1895 e foi considerada por seus contemporâneos, para o bem ou para o mal, uma obra sem paralelos na história do gênero.
Para começar, tudo nela era grandioso (alguns críticos utilizaram sinônimos menos favoráveis, como “monstruoso” e “desmesurado”): Mahler utiliza uma enorme orquestra (dez trompas, oito trompetes, enorme seção de percussão, harpas e sinos, duas solistas, coro, órgão e instrumentos fora de cena), numa composição extremamente longa, mesmo para os padrões exagerados da escola neogermânica (cinco movimentos e quase uma hora e meia de música).
A Segunda Sinfonia nasceu vinculada a um programa, recurso usado por Mahler não tanto como meio para a “representação musical” de modelos literários ou pictóricos, mas sim como inspiração geral, capaz de conferir unidade a uma obra tão diferenciada e extensa. A “ideia condutora” dessa sinfonia pode ser resumida no trecho de uma conversa com sua amiga Natalie Bauer-Lechner: “Por que você vive? Por que você sofre? Tudo isso não passa de uma enorme e terrível piada? O que é a vida, o que é a morte? Existe para nós um além? Isso tudo é um sonho, ou essa vida e essa morte têm um sentido?”
O “Andante Maestoso” é escrito em forma- sonata, com quatro elementos inteiramente contrastantes: uma marcha fúnebre, uma melodia pastoral, um tema melancólico e um hino de triunfo (que incorpora o motivo tradicional do Dies Irae [Dia de Ira]). Constantin Floros lembra que esse movimento, intitulado originalmente “Todtenfeier” (“Rito Fúnebre”), foi composto de forma autônoma, inspirado em uma obra do poeta romântico polonês Adam Mickiewicz, com a intenção de expor musicalmente as diferentes percepções históricas e artísticas da morte, dos antigos ritos pagãos à crença cristã no julgamento final.1 Após vinte minutos de uma complexa teia de contrastes e desenvolvimentos, em que o cortejo fúnebre cede o passo a fragmentos da memória, a música termina numa descida cromática aos infernos.
O segundo movimento transcorre num ambiente bem mais terreno, dominado por variações sobre uma forma tipicamente austríaca de valsa popular, o Ländler. Mesmo aqui, Mahler surpreende o leitor com uma abrupta espécie de fugato, que acaba se dissolvendo em seu próprio impulso despropositado, sem levar a lugar algum. A conhecida ironia trágica mahleriana recobre a aparente simplicidade dos temas, num movimento que evoca, musicalmente, a beleza de um passado irremediavelmente perdido.
A ironia romântica também se faz presente no modo como Mahler incorpora a forma do Lied, com ou sem texto cantado, em seus desenvolvimentos sinfônicos. No terceiro movimento, um scherzo, ele utiliza não apenas a melodia e o perpetuum mobile do acompanhamento orquestral de uma das canções do ciclo Des Knaben Wunderhorn [A Trompa Mágica do Menino], mas também se apropria da intenção crítica evocada pelo conhecido “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”. No espelho do “movimento fluente” das águas do riacho, a música se “distorce”, em meio ao turbilhão do fluxo levado pelas cordas. Os temas oscilam entre o humor e o lirismo, o sinistro e o solene: “O sermão agradou, mas nada mudou”, diz a letra da canção original.
Em seguida, a voz aparece pela primeira vez nas sinfonias de Mahler, quando a contralto entoa outra canção do ciclo Wunderhorn: a singela “Urlicht” [Luz Primordial]. O tom é afirmativo, apesar da dramática primeira estrofe. O sofrimento é superado pela fé, num exemplo de reconfortante religiosidade popular, que desemboca na esperada, mas ainda assim surpreendente, ressurreição do movimento final.
Comentando o sentido desse finale apocalíptico, Mahler ressalta que “não há julgamento, não há pecadores nem justos. Ninguém é grande, ninguém é pequeno. Não há punição nem recompensa.” A fanfarra soa fora de cena, como se os metais fossem lentamente se aproximando do primeiro plano, até que o tema da ressurreição irrompe nos trombones. Assim como na Nona de Beethoven, a sinfonia recupera e elabora, numa longa peripécia, vários trechos dos movimentos anteriores (o Dies Irae do primeiro, o tema lírico do segundo, o grito de angústia do terceiro), “salvando” também a unidade da própria obra.
A expectativa abre espaço para a reconciliação anunciada pela primeira estrofe do poema de Klopstock, ouvido “como uma revelação” por Mahler, durante o funeral do maestro Hans von Bülow, seu mentor em Hamburgo. O órgão e os sinos vão confirmar a ressurreição, enquanto as vozes entoam versos de autoria do próprio Mahler: “O que foi gerado deve perecer, o que pereceu deve ressuscitar!”. A promessa revolucionária da reconciliação entre os homens, cantada por Beethoven, é sublimada no Romantismo tardio por uma resignada redenção após a morte. A sinfonia está salva, ainda que isso não salve o mundo. [2011]
JORGE DE ALMEIDA é doutor em filosofia e professor de teoria literária e literatura comparada na USP. Tradutor e ensaísta, é autor de Crítica Dialética em Theodor Adorno: Música e Verdade Nos Anos Vinte (Ateliê, 2007).
1 Floros, Constantin. Gustav Mahler: The Symphonies. Portland: Amadeus, 2003.