A natureza como espaço sagrado, no qual o reencontro com as forças vitais se dá, foi um tema caro ao período romântico. Encontros com o eterno e com forças ora indomáveis, ora acolhedoras, que desnudam a fragilidade humana, são experimentados como uma forma de religiosidade que tem na intimidade e no amor sua mais verdadeira expressão. Neste programa, peças compostas nos séculos xix e xx passeiam por textos sacros e poemas cujo foco realça a voz humana, que não apenas canta a natureza, mas também entoa louvores, preces e pedidos ao divino, ao infinito.
Mestre absoluto do Lied, Franz Schubert foi também um profícuo criador de canções para diversas formações vocais e de peças corais. Na síntese alcançada entre as práticas vocais desenvolvidas nas tradições sacras e nos espaços sociais (reuniões musicais de amigos com pequenos grupos de cantores, em especial), a natureza ocupa um espaço privilegiado. Seu aspecto exuberante e, por vezes, ameaçador aproxima sua música das telas de seu contemporâneo, o artista alemão Caspar David Friedrich, nas quais a pequenez do homem é evidenciada.
Assim, no “Hymne an den Unendlichen” [Hino ao Infinito], ouvimos o texto de Schiller ser trabalhado de forma assertiva, silábica, identificando as poderosas forças da natureza (tempestades, ondas furiosas) com uma expressão musical igualmente enérgica.
Gratidão e confiança são expressas em “Des Tages Weihe” [Consagração do Dia], peça encomendada pela Baronesa de Geymüller para celebrar a recuperação de um tal senhor Ritter, que estivera gravemente enfermo. Schubert realça o texto — de poeta anônimo — ao tratar de forma diferente cada uma das três estrofes, alternando os naipes vocais. Sucedem sentimentos de alegria, lembrança do pesar, revelação da suprema bondade e sensação de plenitude e gratidão.
“Gott ist mein Hirt” [O Senhor é Meu Pastor], paráfrase do Salmo 23, talvez seja, depois da “Ave Maria”, a oração em forma de música mais conhecida de Schubert. O timbre suave e diáfano das vozes femininas é sustentado por um acompanhamento arpejado, com harmonias estáveis e tranquilas. Procedimentos de word painting [pintura de palavras] podem ser ouvidos e “vistos” em diferentes momentos, tais como na frase “er leitet mich an stillen Bächen” [ele me guia a riachos tranquilos], descrita pelas colcheias articuladas aos pares e um pequeno vocalise ondulado na palavra “Bächen”. Adiante, quando a caminhada pelo vale da morte é aludida, vozes internas cantam o tradicional desenho cromático descendente que transforma o clima de confiança em angústia.
Em “An die Sonne” [Ao Sol], a dramaticidade do poema contrapõe a precária condição humana à exuberância de vida que o sol, com sua majestade, derrama sobre a natureza. Intensidades marcadas como forte e figuras rítmicas assertivas contrastam com harmonias e sonoridades mais suaves e sombrias, opondo luz e calor de vida, escuridão e silêncio de morte.
No rol dos fenômenos naturais, a noite, no ideário romântico, é a grande companheira dos amantes e das almas sensíveis, confidente dos sentimentos genuínos que não podem ser revelados à luz do dia. Por isso, há tantas serenatas e canções noturnas que cantam a pureza dos sentimentos. “Ständchen” [Serenata], de Schubert, é uma jocosa pièce d’occasion, encomendada para ser um “presente-surpresa” para a noite de aniversário da jovem Louise Gosmar, em 1827, e seria apresentada pelas “amigas cantoras” da aniversariante, se Schubert não a tivesse escrito para mezzo soprano e quatro vozes masculinas. O poema, de seu contemporâneo vienense, o dramaturgo Franz Grillparzer, talvez tenha lhe sugerido o espírito cortês das serenatas masculinas e, como resultado, o delicado diálogo entre timbres feminino e masculino evoca o ambiente de galanterias e diálogos espirituosos. O acompanhamento leve e obsessivo do piano dá o tom de energia jovial ao jogo amoroso.
Para exprimir a onipotência de Deus, que se reflete na força terrificante da natureza, em “Gott im Ungewitter” [Deus na Tempestade], Schubert remete-nos à escrita coral cerrada e poderosa dos oratórios de Händel. Fugatos silábicos decididos, motivos rítmicos pontuados, densidade e intensidades fortes, construídos sobre o sério tom de Dó Menor, cedem, no final, a um clima de prece esperançosa e confiante no terno tom de Mi Bemol Maior, com andamento mais tranquilo e textura homofônica.
Em “Der Tanz” [A Dança], as alegrias levianas da juventude são cantadas com graciosidade sobre versos de um poeta identificado apenas como Schnitzler. Composto para Irene von Kiesewetter, filha de um mecenas apoiador de Schubert, o alerta sobre a efemeridade da vida e a irreversibilidade do tempo contrasta com a vivacidade da música dançante.
Também no âmbito religioso, a noite é um momento musicalmente privilegiado: as agitações externas cessam e dão lugar à introspecção e ao recolhimento espiritual, condição propícia para que o Verbo se transforme em música. A “Ave Maria”, de Sergei Rachmaninov, sexto movimento de sua Vigília Noturna, Op.37, de 1915, tem o místico caráter austero das cantilenas litúrgicas da igreja ortodoxa russa. O espírito suave é sustentando por uma prosódia fluida, e o único momento fortíssimo, a seis vozes, clama: “ora pro nobis” [orai por nós].
A recuperação do repertório sacro medieval, marca do século xix, está também em “Ave Maris Stella”, de Edvard Grieg. O popular hino medieval teve seu caráter de oração realçado pelo tratamento harmônico bastante tranquilo, com condução de dissonâncias (apogiaturas, retardos), característica da música renascentista, e pela suavidade das vozes em divisi que deslizam por muitos graus conjuntos.
Nas últimas décadas de sua vida, Liszt acentuou sua religiosidade com matizes místicos, e a intensidade dessa espiritualidade pode ser ouvida em seu gigantesco oratório Christus, originalmente para solistas, coro, órgão e orquestra. Com duração aproximada de três horas, estreou sob sua regência em 1873, com um efetivo de trezentos músicos. O “Pater Noster” [Pai Nosso] integra a segunda parte desse oratório, denominada “Após a Epifania”, e tem no cantochão sua matriz melódica. Em clima de meditação, quatro vozes diferentes tecem imitações e procedimentos de escrita coral que conjugam a fluência e a simplicidade do Renascimento com a densidade expressiva do Barroco.
Josef Rheinberger, mais conhecido no meio organístico, possui vasta produção vocal sacra. Seu moteto a seis vozes (três masculinas e três femininas) “Abendlied” [Canção Noturna] faz parte da coleção Geistliche Gesänge [Canções Religiosas]. O texto de Lucas (24:29), “Fica conosco, porque já é tarde, e já declinou o dia”, tem tratamento renascentista com imitações polifônicas e métrica de compasso quase ausente para que o canto silábico deslize com intimidade e leveza.
O amor pelas “coisas tranquilas” oferecidas pela noite é expresso pela suave estaticidade métrico- -melódica que descreve a “vastidão dos mundos” em “Calme Des Nuits” [Calma Das Noites], de Camille Saint-Saëns. O brilho do sol, nesse ambiente delicado, soa como um ruído incômodo à sensibilidade.
Max Reger foi organista, como Rheinberger e Saint-Saëns. Em sua “Nachtlied” [Canção Noturna], para cinco vozes, toma um poema do teólogo do século xvi Petrus Herbert para construir um clima noturno, no qual são evocados a bênção de Deus e a proteção do anjo da guarda. Ainda que as harmonias sejam delicadamente dissonantes e os caminhos resolutivos, inesperados, o tratamento silábico dado ao texto, a suavidade nas intensidades e a métrica fluida resguardam o caráter de oração.
Extraído do poema de Jean Racine, “Le Lundi à Laudes”, “Hymne” [Hino], para quatro vozes masculinas, do compositor e também organista César Franck, traz a santificação do tempo da manhã, característico das laudes matutinas. O ardor do sol nascente é o da fé que anima nosso coração; após a tempestade do pecado, vem a paz. Com um acompanhamento pianístico que se aproxima das figurações do órgão, o texto é trabalhado em diferentes intensidades, que vão do pianíssimo (“Verbo, no qual o Altíssimo contempla sua beleza”) ao fortíssimo (“derrama em nossos corações o fogo de teu amor”).
A peça que finaliza o programa, “Serenata Espanhola”, de Edward Elgar, composta sobre texto do poeta americano Henry W. Longfellow, traz um rogo para que as estrelas, a lua e o vento não perturbem o sono da amada. Os versos finais de cada estrofe se transformam em delicada canção de ninar, que embala os sonhos da amada.
YARA CAZNOK é professora no Departamento de Música da Unesp e autora de Música: Entre o Audível e o Visível (Ed. Unesp, 2004), dentre outros livros.